sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Se eu fosse um passarinho


Eu sou a alegria que se encerra,
Sou a mensagem singela
Em um guardanapo amassado na carteira.
Sou a briga e a sequela,
Sou o ciúme, a revolta e a espera.
Sou a esperança abandonada,
A palavra que ficou entalada,
A atitude sufocada.
Sou o choro, o grito e a mágoa,
Sou o breque e o incentivo,
Sou a omissão e o compromisso,
Sou o amor corrompido,
Sou a sombra pela casa.

Sou parte e sou nada,
Sou a sensação dilacerada,
Sou o herói vencido,
Sou a umidade e a neblina,
Sou o barulho na janela,
Sou a perturbação e a calma.

Sou o sofá e o cinzeiro,
Sou o livro na estante,
Sou o nome sem palavra,
Sou a música, sou seus pés,
Sou a dança descoordenada.
Sou a agonia que lancina,
Sou a dúvida assassina,
Sou a fé que inspira os reinícios.

Sou a mancha roxa no corpo,
Sou o filme no finalzinho,
Sou a mordida e o gemido,
Sou um chorinho tímido,
Sou o escândalo de graça.
Sou a incompreensão e o incompreendido,
Sou o homem e o menino,
Sou o sentimento desvanecido,
Sou borboleta na vidraça.

Sou a oração desvirgulada,
Sou o sonho interrompido,
Sou o jantar de velas apagadas.
Sou a lágrima escorrida,
Sou o último olhar,
Sou a reação não tida,
A mentira e a desgraça,
O desespero e  a covardia.

Sou o surto e a lucidez,
Sou a mácula e a chaga exposta,
Sou paralítico e apressado,
Sou um coração sem as válvulas.
Sou a prisão, detento, feitor e carrasco,
Sou o enjôo dos bêbados de sábado,
Sou as lamentações das missas de domingo.

Eu sou a rede que volta do mar vazia,
Sou o filho esquecido no pátio,
Sou o problema e a maestria
Dos passos mais complicados.

Sou a guerra, sou a fome,
Sou o que vem depois de uma hecatombe.
Sou cegonhas de papel,
Sou a gravidez distante,
Sou transeunte de rodoviária,
Sou a convulsão, o espasmo e a saliva,
Sou o orgulho, o rancor e o veneno que mata,
Sou a promessa e a praga,
Sou palpável ectoplasma,
Sou a placa de trânsito quebrada,
Sou a bola errada,
Sou a decepção e a traição,
Sou as pernas encolhidas e banhadas de lágrimas.

...Mas se eu fosse um passarinho,
Eu voava para bem longe daqui.

Angelo A. P. Nascimento
(2004)

8 comentários:

Átila Goyaz disse...

Clap clap clap! Muito bom mesmo! :)

Palatus disse...

Sou um trem desgovernada cheio de almas penadas.

Cara, orbigado pela visita e pelas palavras. faz tempo que não lemos nossos blogs, digo o meu por ti e o teu por mim. Falta-me tempo... a tese me consome. um abraço.

s a u l o t a v e i r a disse...

Absurda e dolorosamente lindo.
Menino, que és tu? Que palavras são essas? Que sou eu?

Parabéns. Obrigado.

Belo domingo de vôos.

Violeta Ramos de Lima disse...

(:

Luna disse...

extremista por demais, porém lindo.

Ira Buscacio disse...

Angelo,

Postei um comentário, mas não achei aqui, de qualquer forma, eu adorei.

Bjs

SexyMachine disse...

Que peosia perfeita amigo... Amei...

Abração...

Rob Novak disse...

"Sou as pernas encolhidas e banhadas de lágrimas."

Ótimo poema! Uma linguagem que me agrada ler e muito parecida com a que uso na escrita.
O ser tanto e tantas coisas, às vezes, pesa, mas pode alçar voo tão leve quanto um pássaro.

Abraço!

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